A esteatose hepática representa a alteração gordurosa que acomete o fígado, e que tem como nomenclatura mais completa “Doença Hepática Gordurosa Não Alcoólica” (NAFLD – nonalcoholic fatty liver disease). A definição da esteatose hepática pela Associação Americana para o Estudo das Doenças do Fígado é de que a esteatose representa o acúmulo primário de gordura no fígado, sem que este acúmulo tenha sido causado por outras alterações, como o consumo de álcool, medicação ou doenças hereditárias. No mecanismo da esteatose hepática, vesículas de gordura são incorporadas às células do fígado, chamadas de hepatócitos. A esteatose hepática primária está comumente associada às alterações metabólicas (conhecidas como Síndrome Metabólica), como a obesidade, a resistência à insulina (diabetes) e alterações de colesterol e triglicérides (dislipidemias). Estas alterações metabólicas são importantes porque aumentam o risco de doença cardiovascular e diabetes, grandes causadoras de óbitos. Além disso, este acúmulo de gordura no fígado pode gerar um processo inflamatório nas células deste órgão, causando um quadro de esteato-hepatite não alcoólica. O problema é que a esteato-hepatite pode evoluir para a fibrose, cirrose hepática e câncer de fígado (hepatocarcinoma). Desta forma, o meu objetivo com este artigo é discutir a relação da esteatose hepática com os distúrbios metabólicos e seus riscos, além das lesões que ocorrem no fígado decorrentes da presença da gordura.
A esteatose hepática é atualmente uma doença epidêmica. A sua prevalência é de mais de 30% dos adultos, e continua crescendo. Já é possível se dizer que a esteatose hepática é a doença crônica do fígado mais comum em todo o Mundo, sendo um motivo importante de consultas a gastroenterologistas. Nas crianças, a esteatose hepática já acomete de 13 a 80% deste grupo, e tem clara relação com a obesidade infantil. É interessante perceber que com o aumento global da obesidade, a prevalência da esteatose hepática também aumenta. Como a esteatose está intimamente associada à obesidade, resistência à insulina, hipertensão arterial e alterações de colesterol e triglicérides, ela é considerada a manifestação hepática na Síndrome Metabólica. Tanto o aumento do índice de massa corpórea como o aumento da gordura abdominal (visceral), são considerados fatores de risco para a esteatose hepática. Na verdade, quase dois terços dos pacientes obesos e com diabetes apresentam gordura no fígado. Além disso, estudos mostram que 50% dos pacientes com alterações de colesterol e triglicérides apresentam esteatose hepática. Um dos mecanismos mais importantes para o desenvolvimento da esteatose hepática é a resistência à insulina, e por isso há uma clara relação entre a doença hepática e o maior risco de diabetes. Além disso, sabe-se que pacientes com esteatose hepática e que apresentam alterações compatíveis com a Síndrome Metabólica podem evoluir com fibrose hepática e até mesmo, falência do fígado.
Quanto aos mecanismos de acúmulo de gordura, o mais óbvio é de que a esteatose resulta de uma falta de equilíbrio entre a entrada de gordura na célula do fígado e o seu consumo. No entanto, está claro que este mecanismo é mais complexo. Sabe-se hoje que a o acúmulo de gordura no fígado é decorrente do aumento da entrada de ácidos graxos livres (gorduras) provenientes do tecido adiposo resistente à insulina, processamento hepático alterado da gordura da dieta, formação hepática de gordura aumentada, e piora na remoção da gordura da célula do fígado.
Em relação à evolução da esteatose hepática, a mortalidade é significativamente aumentada em decorrência de problemas cardiovasculares associados e de complicações hepáticas. A esteatose hepática tem consequências sistêmicas e que pioram a resistência à insulina, prevê o surgimento de complicações das alterações metabólicas e aumenta os riscos de eventos cardiovasculares. É interessante dizer que o fígado não é apenas um alvo passivo da síndrome metabólica, visto que o mesmo participa do desenvolvimento de alterações sistêmicas. Isto mostra que a esteatose hepática não é apenas associada com outras doenças, mas que na verdade precede as manifestações metabólicas alteradas e que participa para que elas se desenvolvam através da produção de substâncias pró-inflamatórias. A mortalidade é maior nos pacientes com esteato-hepatite do que na esteatose hepática simples. Sabe-se que 30% dos pacientes com esteatose hepática evoluirão para a esteato-hepatite e que 30 a 40% dos pacientes com esteato-hepatite evoluirão para fibrose e cirrose hepática. O grupo cirrótico apresentará índices de mortalidade de 25% em 10 anos.
Pensando nos fatores de risco para o desenvolvimento da esteatose hepática, existem uma série deles. A idade avançada é citada como um fator de risco importante, e o sexo masculino é mais afetado. Acredita-se que as mulheres podem ter uma proteção adicional do hormônio estrogênio. A origem étnica também é indicada como um fator de risco, sendo que a esteatose é mais comum em hispânicos do que africanos, por exemplo. Como o cigarro se apresenta como um agressor, ele também pode colaborar para o desenvolvimento da esteatose, assim como a sua progressão. O estilo de vida inadequado favorece o desenvolvimento da síndrome metabólica juntamente com a esteatose hepática, o que é bastante comum na sociedade moderna. Ainda quanto ao desenvolvimento e progressão da esteatose, sabe-se que condições como a síndrome da apneia obstrutiva do sono, alterações na flora intestinal, a ingestão de álcool e obesidade, também participam deste processo. A obesidade, principalmente a abdominal (visceral), participa deste processo através da produção de hormônios e substâncias pró-inflamatórias, causando a falta de regulação do metabolismo das gorduras no fígado e estresse oxidativo.
Quanto ao diagnóstico da esteatose hepática, a pesquisa desta alteração hepática deve ser feita em pessoas obesas, diabéticos e que apresentem alguma alteração compatível com a síndrome metabólica (hipertensão, colesterol, triglicérides, circunferência abdominal aumentada). Na prática clínica, observa-se que a maior parte dos pacientes se apresenta assintomática, e ocasionalmente referem fadiga ou uma discreta compressão na região superior do abdome. Em geral, o diagnóstico é realizado em exames de rotina, como a ultrassonografia e através da elevação das enzimas do fígado. As enzimas hepática alteradas são a TGO (aspartato aminotransferase – AST) e TGP (alanina aminotransferase – ALT), e que estão elevadas em 50% dos casos de esteatose hepática e em 80 % dos pacientes com esteato-hepatite. Em relação à marcadores biológicos que podem predizer sobre o risco de esteato-hepatite, a citoqueratina-18 (CK18) parece ser o exame mais promissor e o mais estudado atualmente para este fim, mas ainda com algumas restrições para o uso rotineiro, como sensibilidade baixa para a doença (66%). Por isso, os exames de imagem têm um enorme espaço para o diagnóstico da esteatose hepático e da esteato-hepatite. A ultrassonografia ainda representa o melhor exame para o diagnóstico da esteatose hepática simples, já que este exame tem dificuldade em diagnosticar a esteatose da esteato-hepatite, diagnosticando a cirrose hepática somente em graus mais avançados. A tomografia computadorizada de abdome faz o diagnóstico de esteatoses moderadas ou avançadas, e também não detecta a cirrose no seu início. A ressonância magnética nuclear é superior à ultrassonografia e tomografia computadorizada no diagnóstico de esteatoses iniciais e na quantificação de gordura. No entanto, como os exames de imagem ainda podem deixar dúvidas quanto à evolução da esteatose hepática, o exame considerado padrão “ouro” para a confirmação de inflamação e fibrose (cirrose) ainda é a biópsia hepática. O problema é que este é um método invasivo, e por isso a biópsia hepática ainda é um método com indicações discutidas.
Em relação ao tratamento, o seu objetivo é controlar ou parar a progressão da esteatose hepática, prevenindo a inflamação do fígado e a cirrose hepática. Desta forma, considerando a enorme participação dos distúrbios metabólicos no desenvolvimento e progressão da esteatose hepática, o tratamento dos principais fatores de risco, como obesidade e resistência à insulina, é o foco da terapia. A primeira linha de tratamento consiste na redução de peso através da redução de calorias e prática de atividade física. A diminuição de peso reduz a gordura periférica e resistência à insulina no fígado, enquanto o exercício físico altera a progressão da doença gordurosa do fígado. Estas medidas básicas já levam à diminuição das enzimas hepáticas quando as mesmas se encontram aumentadas. Alguns estudos sugerem também a redução de 8% do peso através da intervenção no estilo de vida pode reduzir significativamente a gordura no fígado.
Especificamente sobre a abordagem alimentar, estudos sugerem que o padrão dos alimentos ingeridos tem mais impacto no controle da esteatose hepática do que a quantidade. No entanto, não há uma dieta específica para esta doença, mas como há associação da esteatose com o diabetes e as doenças cardiovasculares, sugere-se que a alimentação siga as regras já discutidas para estas doenças. Sendo assim, recomenda-se uma dieta hipocalórica, hipogordurosa e com a ingestão de carboidratos de bom valor nutricional. Por isso, deve-se evitar o consumo de açúcares refinados e produtos que os contenham, a ingestão de gordura saturada (carnes vermelhas, leite integral, manteiga), e estimular o consumo das gorduras insaturadas (peixes, azeite, sementes, grãos e castanhas). Também é importante recomendar a ingestão de boa quantidade de fibras na alimentação, já que estas aumentam a saciedade (o que facilita a redução de peso) e diminuem a absorção de açúcar e gordura. Uma alternativa mais radical para o controle da esteatose hepática é a cirurgia bariátrica para os pacientes com obesidade severa, já que o acúmulo patológico de gordura no fígado ocorre em 75 a 100% destes pacientes.
Quanto ao tratamento medicamentoso para o controle da esteatose hepática, algumas medicações são propostas. Uma delas é a metformina, medicamento usado para o controle da glicemia, já que há uma relação clara entre esteatose hepática, resistência à insulina e diabetes. No entanto, sabe-se que a metformina não consegue manter os níveis das enzimas do fígado em valores mais baixos por muito tempo, além de não apresentar resolução do tecido hepático quando biópsias são realizadas. Por isso, o uso da metformina é restrito aos pacientes que apresentam quadro de intolerância à glicose e diabetes concomitantemente à esteatose hepática. Outra medicação utilizada é a pioglitazona, que também é um antidiabético. A pioglitazona tem se mostrada capaz de aumentar a sensibilidade à insulina no músculo e no fígado, diminuindo assim a produção de gordura neste órgão. Estudos mostram que este medicamento foi capaz de reduzir as enzimas hepáticas e melhoraram o padrão celular do fígado em dois terços dos casos, além de ter sido bem tolerada pelos pacientes. No entanto, o uso prolongado da pioglitazona se associa com edema (inchaço), osteoporose, ganho de peso, insuficiência cardíaca congestiva, acidente vascular cerebral e câncer de bexiga. Por isso tudo, a pioglitazona também não pode ser recomendada de forma generalizada a todos os pacientes.
O meu objetivo com este artigo foi mostrar a importância da esteatose hepática e os seus risco à nossa saúde, porque além de um problema no fígado, ela faz parte de um grupo de alterações que se relaciona a uma enormidade de problemas metabólicos, como diabetes, doenças cardiovasculares e hipertensão arterial. Desta forma, realize os seus exames de rotina e se a sua ultrassonografia mostrar a presença de gordura no fígado ou alteração das enzimas hepáticas no exame de sangue, procure um médico para discutir este problema com mais profundidade. Como se viu aqui, as mudanças no estilo de vida, como boa alimentação e a prática de atividades físicas regulares é fundamental para o controle da doença, e a orientação de profissionais especializados é fundamental para que os resultados de tratamento sejam alcançados.
Dados do autor:
Dr. Fernando Valério
Gastroenterologista, Nutrólogo e Proctologista
São Paulo, SP
Consultas: particulares e Omint
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