Em 1991 eu iniciava a minha formação médica aos 17 anos, e após um ano de estudos e muita dedicação, eu iria pela primeira vez assisitir a uma aula na Faculdade de Medicina. Mas ao chegar lá percebi um grau de agitação um tanto quanto exagerado, com gritos e palavras não condizentes com o ambiente que eu imaginava ser de um curso como este. Neste momento fui identificado como mais um calouro por um grupo de veteranos, e assim começou o meu primeiro dia na Faculdade. A primeira coisa a que fui submetido foram ofensas morais, seguida da raspagem do meu cabelo com a confecção de palavras de baixo calão (escritas com ortografia errada, por sinal). A seguir, tive o meu caderno roubado por um veterano, que o rasgou inteiro, sem deixar uma única página intacta. Neste momento eu lhe sugeri que utilizasse o caderno, o que seria algo mais inteligente. Ele preferiu o vandalismo. Quando eu já acreditava que o meu martírio estava chegando ao fim, fui levado à uma área gramada e que havia sido molhada pelos alunos mais velhos. A partir daí as agressões se tornaram mais rudes e físicas. Fui obrigado a me deitar sobre a lama, e solicitado a afundar o meu rosto naquele piso. Como me recusei, recebi um soco nas costas e senti um pé em minha nuca, que obviamente empurrou a minha cabeça contra o piso de lama. Como mostrei certa revolta neste momento, fui segurado por dois veteranos, enquanto um terceiro colocou a mão no meu bolso e roubou o dinheiro que tinha para a minha condução. Em toda a minha vida aquele foi o único dia em que fui assaltado, e o pior, o crime foi cometido por pessoas que atualmente se dizem médicos e profissionais da saúde. Quanto a uma possível punição, eles receberam apenas um aviso da Faculdade para que o trote fosse encerrado. Infelizmente, como assistimos nos últimos dias, este crime ainda é cometido livremente, e principalmente por “bandidos de jaleco branco”, como aconteceu na Universidade de Mogi das Cruzes na semana passada, quando um sítio foi alugado e se transformou em um campo de tortura.
Todos os anos assistimos em programas jornalísticos e lemos em jornais e revistas sobre a prática absurda do trote, e ele continua sempre vivo e cada vez mais requintado. Há alguns anos um calouro de Medicina morreu afogado durante um destes eventos primitivos, e mesmo assim o trote ainda é visto como brincadeira e confraternização por alguns. Somente neste ano assistimos alunos queimados, agredidos, constrangidos, cuspidos, e as Faculdades continuam com uma postura muito frouxa sobre isto. Na minha Faculdade, as meninas eram obrigadas a inverter a ordem das roupas e vestirem as roupas íntimas por cima das roupas tradicionais, o que causava imensa vergonha a elas. Imagine se um bando de vagabundos submetesse a sua filha a uma agressão como esta. Também vi jovens menores de idade, assim como eu quando ingressei na Faculdade, serem obrigados a ingerir bebidas alcoólicas em grande quantidade até a completa embriaguez. E o pior, nunca vi um crimonoso deste ser ao menos suspenso.
Sinceramente, não sou formado em Psicologia ou qualquer outra área que busque o entendimento do comportamento humano, mas posso lhes afirmar que os grandes aplicadores de trote que conheci eram alunos medíocres, com auto-estima muito baixa e que como médicos não fariam falta alguma à Sociedade. E por isso não entendo a complascência que as Faculdades dão a este tipo de aluno. Se eu como aluno conseguia identificar os agressores mais violentos, por que as Faculdades não poderiam fazer o mesmo? De qualquer forma, acredito que o trote já se tornou um problema de polícia, e que estes alunos deveriam ser tratados como bandidos, assim como são tratados os assaltantes e ladrões comuns, mas que por azar ou condição social, vivem em favelas ou em áreas muito carentes, ao contrário dos alunos de Mogi das Cruzes, que pagam R$4000,00 reais por mês para cursar a Faculdade de Medicina.
Como passei pessoalmente por este tipo de humilhação, sei que as consequências emocionais que um processo violento como este pode causar em um jovem. Eu me lembro de chorar muito no caminho de casa após ter sido liberado do meu trote e da imensa decepção que tive naquele dia em relação à Faculdade de Medicina. Por isso, recomendo aos Pais que busquem a lei caso sintam que os seus filhos foram violentados de alguma maneira, comuniquem a imprensa sobre os fatos ocorridos e exijam punição por parte das Universidades em relação aos “alunos criminosos”. Em relação às Faculdades, que elas coordenem uma confraternização de bom gosto e que punam de forma rigorosa os alunos que possam trazer qualquer problema moral ou físico aos recém-chegados.
Postado por:
Dr. Fernando Valério