Religião, Medicina e Bom Senso.

Religião, Medicina e Bom Senso.

Na semana passada assistimos a eventos impressionantes envolvendo a violência domiciliar, decisões médicas difíceis e punições religiosas. Em Pernambuco, uma menina de nove anos foi molestada sexualmente pelo Padrasto, e por uma grande infelicidade e capricho da maldade, esta agressão culminou com uma gestação de gêmeos. Após a avaliação do risco de morte que esta criança poderia correr com o evoluir da gravidez, ainda mais gemelar, os médicos decidiram que o abortamento seria indicado, e assim realizaram-no. Deixo claro que esta atitude tem apoio e respaldo legal, já que as crianças foram geradas através de um estupro. Como consequência disto, o Arcebispo de Recife e Olinda, decidiu excomungar os médicos que realizaram o aborto, já que segundo a posição da Igreja Católica, este é um dos pecados mais graves. Por outro lado, estuprar uma criança não é considerado algo tão grave, já que bandido que realizou este ato grotesco não sofreu qualquer punição da Igreja. Como este é um tema muito complexo e delicado, já que mexe com a fé e esperança de muitos, assim como conceitos racionais de outros, serei o mais explícito e detalhado em minhas opiniões.

Eu sou católico, acredito em Deus, em Jesus Cristo e no Espírito Santo, tenho fé, mas não frequento a Igreja. Por sinal, sou casado apenas no Civil. Desta forma, fica claro que a minha religião representa o respeito e amor ao próximo, a honestidade, a generosidade e proteção aos mais humildes, e a certeza de que devemos praticar estes atos, e não apenas repeti-los em uma missa. Se como cidadão sempre tive algumas restrições ao comportamento da Igreja, como posições políticas e ostentação da riqueza e poder em um Mundo miserável, como médico as minhas críticas são muito mais ferozes. Neste acontecimento em Pernambuco, o que queria a Igreja? Uma vida destruída aos nove anos, com grande possibilidade de óbito da Mãe? Ou pior, que esta criança desse a luz a estes bebês, e assim pudesse carregar as cicatrizes vivas da violência a que foi submetida? Realmente, eu não tenho a menor condição moral e técnica (como médico) de aceitar que a Igreja interfira de modo tão negativo em relação a uma atrocidade como esta. Fica aqui o meu registro sincero e honesto: se eu fosse o médico responsável por este caso, teria realizado o abortamento, já que ser excomungado por uma Instituição com critérios tão questionáveis como esta me traria menos dor do que deixar esta criança morrer. Em alguns momentos devemos usar menos do nosso fideísmo (a idéia de que devemos confiar apenas na fé), e usarmos um pouco da nossa razão.

Devemos lembrar que a Igreja Católica é contra qualquer método de contracepção, assim como a camisinha. No entanto, se esquece que uma das doenças mais letais dos nossos tempos, a AIDS (síndrome da imunodeficiência adquirida), é transmitida através do contato sexual, e que pode ser evitada através do uso do preservativo sexual. Em um continente pobre como a África, que sofre uma epidemia desta doença, a liberação do uso da camisinha poderia salvar a vida de inúmeras mulheres, homens e crianças. Como médico, considero a não liberação da camisinha um erro gravíssimo, mas como cidadão, considero isto um genocídio. Nós católicos, que criticamos a posição dos muçulmanos e judeus, que causam tantas mortes em suas guerras religiosas, não somos nada melhores, e assassinamos inocentes em troca de um falso moralismo não adequado aos tempos modernos. Como fonte de conhecimento sobre este assunto, indico o livro “Em nome de Deus – o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo”, escrito pela autora Karen Armstrong. Segundo ela, “todos estes movimentos fundamentalistas se caracterizam pelo repúdio à modernidade, cujas descobertas e teorias científicas muitas vezes contradizem a verdade mítica de seus livros sagrados, constituindo, por isso, uma suposta ameaça de sua fé”.

Como o bom senso ainda reina para algumas pessoas, Barack Obama aprovou e financiará as pesquisas com células tronco embrionárias nos Estados Unidos, que são a maior possibilidade da Medicina moderna para que inúmeras pessoas possam receber tratamento para os seus males, desde doenças degenerativas, a traumas neurológicos e cânceres. Se negar a aceitar uma evolução como esta é condenar ao sofrimento milhões de pessoas em todo o Mundo. Algumas vezes a religião pode esconder e disfarçar a hipocrisia. George W. Bush vetou este tipo de pesquisa enquanto era Presidente, já que aceitava e repeitava os preceitos da sua religiosidade. Pena que toda esta fé não o impediu de matar milhares de jovens norte-americanos no Iraque.

Com este artigo não quis ofender e muito menos criticar a religiosidade e livre arbítrio de qualquer pessoa, mas as minhas posições ficam aqui registradas, assim como a minha esperança de que as religiões possam trazer paz e respeito aos seus seguidores. Que Deus nos proteja de nós mesmos.

Postado por:

Dr. Fernando Valério